Ontem fiz um post com frases impactantes da Barbara Kruger. Uma delas era parte de uma campanha pró-aborto. Curiosamente um Anônimo pegou essa questão e trouxe o tema à mesa, com um texto que pode ser lido
aqui.
Como acho que esse tema dá muito pano pra manga, resolvi transformá-lo em post, pra discuritmos à vontade.
Antes de começar, queria dizer que respeito muitíssimo quem escolhe fazer ou não um aborto. Mais ainda, quero deixar claro que essa discussão nada tem a ver com os casos terríveis de abortos espontâneos, onde a grávida feliz se vê numa situação de desolamento total. Por isso, não se ofendam, certo? A discussão é sobre a escolha, ou não, por abortar um bebê que aparece de forma ou momento indesejáveis. :)
Desde nova acompanho as discussões sobre a legalização do aborto. É um tema recorrente na nossa sociedade e bem presente na vida da maioria dos brasileiros, seja através de uma coleguinha grávida na escola, seja por outra que foi na clinica X, ou mesmo aquela que teve uma infecção e quase morreu numa clinica bizarra. Mas o mundo gira e, quando a gente se aproxima do universo adolescente, fica bem fácil se deparar com essa temática (até porque as mulheres adultas não expõem suas questões com tanta facilidade).
Toda vez que esse tema chega na esfera política, acaba sendo abafado por milhões de entidades (principalmente religiosas) que, em defesa à vida do feto, partem pra cima e impedem que o assunto ande. A última vez que acompanhei uma discussão interessante foi quando o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, defendeu um plebiscito sobre o aborto e trouxe à tona um turbilhão de informações que circundam o tema, mas que às vezes são deixadas de lado.
Outro dia o Ornitorrinco me enviou um post de uma pessoa que questionava a liberação do aborto no Canadá. Segundo ela, 1/3 das gestações seria interrompida. Também segundo ela, isso vai contra a economia do país, já que eles estão envelhecendo e tendo que "importar" imigrantes.
Na Suécia também é liberado e, obviamente, passaram um tempo tendo alguns problemas com as meninas mais jovens. Elas passaram a tratar o aborto como um método contraceptivo. Assim, o Governo terminou por estabelecer um número máximo de abortos permitidos na vida de cada mulher e começou a equilibrar a balança. Essa medida, juntamente com uma mega campanha educativa, claro.
Mas o Brasil está muito longe dessas questões. Temos uma super-população, extremamente pobre, semi-analfabeta, sem auxílio da saúde pública para a maioria das coisas, sem assistência psicológica pra tudo, sem normatização sobre o aborto. Aqui fingimos que isso não existe e assim fica combinado. Somos bons em fingir que as coisas não existem, né? ;)
O Ministério da Saúde, em 2008, terminou uma
pesquisa interessantíssima sobre o tema (são 20 anos de pesquisas sobre o aborto no Brasil), vou tentar passar aqui alguns dados. Trata-se de um texto de 315 páginas, então tentarei ser o mais consisa possível.
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"Os resultados confiáveis das principais pesquisas sobre aborto no Brasil comprovam a tese de que a ilegalidade traz conseqüências negativas para a saúde das mulheres, pouco coíbe a prática e perpetua a desigualdade social. O risco imposto pela ilegalidade do aborto é majoritariamente vivido pelas mulheres pobres e pelas que não têm acesso aos recursos médicos para o aborto seguro.
Enfrentar com seriedade esse fenômeno significa entendê-lo como uma questão de cuidados em saúde e direitos humanos, e não como um ato de infração moral de mulheres levianas. E para essa redefinição política
há algumas tendências que se mantêm nos estudos à beira do leito com mulheres que abortaram e buscaram o serviço público de saúde: a maioria é jovem, pobre, católica e já com filhos.
Essa descrição não representa apenas as mulheres que abortam, mas as mulheres brasileiras em geral. Por isso, a compreensão do aborto como uma questão de saúde pública em um Estado laico e plural inaugura um novo caminho argumentativo, no qual o campo da saúde pública no Brasil traz sérias e importantes evidências para o debate."
- Quantidade: 1.054.242 abortos ocorreram em 2005.
- Faixa etária: a vasta maioria dos estudos inclui mulheres entre 10 e 49 anos.A faixa etária com maior concentração de abortos é de 20 a 29 anos (51% a 82%). Na adolescência, os estudos registram uma concentração entre 72,5% e 78% na faixa etária de 17 a 19 anos.
- Religião: entre 44,9% e 91,6% do total de mulheres declaram-se católicas. Entre 4,5% e 19,2% declaram-se espíritas, e entre 2,6% e 12,2% declaram-se protestantes. Um estudo com 21 mulheres que induziram o aborto identificou que 9,8% delas não tinham religião.
- Participação social: a maioria das mulheres participa do mercado de trabalho (uma mudança significativa para os anos 1980, quando mais da metade das mulheres estava fora do mercado de trabalho). Descrição do universo do trabalho das mulheres que realizam aborto: trabalhos femininos (emprego doméstico), comércio, ofícios informais (cabeleireira e manicure), além de estudantes, com renda familiar de até três salários mínimos.
- Adolescência: Os estudos sobre aborto na adolescência seguem as tendências sociais de gravidez nesse período da vida, mostrando adolescentes fora da escola e do mundo do trabalho, em situação de dependência econômica de familiares e/ou do companheiro. Apesar de essas serem questões importantes para a análise da vulnerabilidade feminina frente a uma gestação, os estudos que apresentam evidências ou análises de como elas atuam na decisão pelo aborto são ainda raros.
- Chances: gestação entre jovens de 18 a 24 anos. - quanto maior a renda e a escolaridade, maiores as chances de a primeira gravidez resultar em um aborto.
- Métodos contraceptivos: Uma diferença importante entre os estudos com grupos de adolescentes (10-19 anos) e de mulheres jovens adultas (20-29 anos) é a declaração de uso de métodos contraceptivos: - as adolescentes fazem menor uso desses métodos quando comparadas com as mulheres jovens adultas. Mais da metade das mulheres jovens adultas que moram nas Regiões Sul e Sudeste e que abortam declara uso de métodos, em particular a pílula anticoncepcional, o que sugere seu uso irregular ou equivocado. No caso dos estudos da Região Nordeste, a ausência de métodos contraceptivos na ocasião da gravidez é alta, entre 61,1% e 66% em estudos com amplas amostras de base populacional.
- Filhos anteriores: Apenas entre 9,5% e 29,2% de todas as mulheres que abortam não tinham filhos, um dado que leva muitos estudos a inferir que o aborto é um instrumento de planejamento reprodutivo importante para as mulheres com filhos quando os métodos contraceptivos falham ou não são utilizados adequadamente. Quando os estudos segmentam segundo faixa etária e número de filhos, as adolescentes compõem o grupo que menos induz o aborto.
- Métodos abortivos: nos anos 1980 - venenos, líquidos cáusticos ou injeções. Depois dos anos 90 - misoprostol passou a ser o método preferencial para realizar o aborto em casa ou para iniciá-lo em casa e terminá-lo nos hospitais. Para as mulheres que finalizam o aborto nos hospitais, é nas primeiras 24 horas pós-uso do misoprostol que a mulher procura um hospital público. Em geral, os sintomas são dores abdominais e sangramento. Entre 70% e 79,3% delas chegam com esses sintomas, sendo diagnosticado o abortamento incompleto. Entre 63% e 82% delas estão com até 12 semanas de gestação. O tempo de internação é de 1 dia entre 30% e 85,9% das mulheres incluídas nas pesquisas. Entre 9,3% e 19% apresentam sinais de infecção.
- Mortalidade: Nos anos 1990, o aborto induzido se manteve entre a terceira e quarta causa de mortalidade materna em várias capitais brasileiras. A estimativa oficial da razão de morte materna é de 76/100.000. Em algumas cidades, como Recife e Salvador, o aborto ocupou o primeiro e o segundo lugar no grupo. Os estudos de meados dos anos 1990 e 2000 passaram a registrar uma mudança epidemiológica significativa no perfil da morte materna por aborto induzido. Houve uma redução de casos e várias pesquisas passaram a analisar a correlação entre a queda na morbimortalidade por aborto induzido e o uso do misoprostol como método abortivo em detrimento de métodos perfurantes, cáusticos ou do recurso às leigas.
- Histerectomias (retirada do útero): entre as décadas de 1970 e 1980 registravam índices alarmantes de histerectomias por aborto séptico. Registrou que 88% das histerectomias até 24 semanas de gestação deviam-se a aborto realizado em condições inseguras, em geral com métodos perfurantes.
- Misoprostol: medicamento com circulação restrita no País e proibido para fins abortivos fora de indicações médicas controladas. O universo da comercialização e circulação do misoprostol é desconhecido, mas dados iniciais mostram que o itinerário dessa substância segue o do tráfico de drogas ilícitas e de anabolizantes. Se, por um lado, o acesso ao misoprostol reduziu as seqüelas e complicações por métodos abortivos arriscados comuns aos anos 1980, por outro, o contexto de ilegalidade do aborto lança novos desafios à saúde pública. Um deles é o risco de aproximação das mulheres e seus parceiros ao tráfico ou comércio ilegal de drogas para adquirir o misoprostol; o outro é o de que, para muitas mulheres, a eficácia do misoprostol como método abortivo depende do acesso imediato a hospitais para a finalização do aborto.
- Ilegalidade: Um estudo qualitativo com 11 mulheres processadas judicialmente por aborto induzido nos anos 2000 mostrou que 80% delas iniciaram o aborto com misoprostol, mas quase a metade foi denunciada à polícia pelos médicos que as atenderam nos hospitais. Muito embora a denúncia seja uma violação de princípios éticos fundamentais à saúde pública e à profissão médica, as mulheres não têm a garantia do sigilo durante a fase de hospitalização. Quase todas as mulheres do estudo foram processadas pela prática do aborto após denúncias sofridas durante o processo de hospitalização.
- Síndrome de Möbius ou Seqüência de Moebius (SM): foi apontada como a principal seqüela para o feto da tentativa ineficaz de aborto por misoprostol. A SM é uma má-formação rara, e constituía objeto de poucos relatos na literatura internacional até a abertura do debate por pesquisadores brasileiros. Há quase uma década, as mulheres recebem a explicação científica de que a má-formação de seus bebês é resultado da tentativa ilegal de aborto por misoprostol. Esta hipótese científica não constitui um diagnóstico médico consolidado. Não há estudos que analisem o impacto da enunciação do diagnóstico de SM como resultado do uso de misoprostol.
"OS ESTUDOS NÃO MOSTRAM como se aborta nas clínicas privadas, com leigas ou parteiras. Não se sabe como as mulheres têm acesso aos instrumentos abortivos, em particular de quem compram ou recebem o misoprostol ou os chás; não se sabe quais os recursos abortivos e práticas adotados pelas mulheres rurais e indígenas; não se sabe qual o impacto da raça na magnitude, na morbidade e na experiência do aborto induzido; não se sabe como as desigualdades regionais são refletidas na morbidade do aborto induzido ilegalmente; não se sabe como indicadores de desigualdade social (classe social, geração, raça, deficiência) atuam na decisão de uma mulher por induzir um aborto; não se sabe como mulheres em situação de violência sexual doméstica decidem pelo aborto; não se sabe como a epidemia do HIV/aids se relaciona com a prática do aborto. Sabe-se pouco sobre o universo simbólico das mulheres que abortam, sobre o processo de tomada de decisão e o impacto em sua trajetória reprodutiva ou em seu bem estar. Os estudos sobre assistência à saúde e mulheres em situação de abortamento induzido são raros, e há poucas pesquisas sobre os serviços de aborto legal."
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Pessoalmente sou 100% pró a legalização do aborto. Acho um escândalo expor nossas mulheres à busca do submundo, à ilegalidade, para que possam interromper uma gravidez. São mais de 1 milhão de mulheres por ano, só aqui no Brasil, que se submetem a todo tipo de mazela para poder garantir a interrupção de sua gestação. São quase 800 mortes por ano, só no que se tem registro.
Isso não significa que sou a favor de todos os abortos. Já briguei com uma amiga porque ela e o namorido resolveram abortar porque estavam começando o relacionamento. Achei pouco, já que os dois estavam e estão perdidamente apaixonados e, seis meses depois engravidaram novamente e tem uma linda filhinha. Minha revolta foi principalmente em função do danos físicos e psicológicos que este ato poderia ter provocado, indo numa clinica obrigatóriamente clandestina.
Também já briguei com uma amiga que não quis abortar. Ela tinha 14 anos, sem apoio do pai do feto, sem apoio da família. Ela e uma barriga, soltos no mundo. Essa amiga, convencida pelo pai do feto que abortar seria como dar um tiro na cabeça de alguém, ficou sozinha, sem brilho no olho, sem pique pra vida. Seu filho e ela passaram por dificuldades tremendas que não desejo a ninguém. Dificuldades além de financeiras, emocionais profundas.
Não acho nada simplória essa discussão, acho que aqui tem muito causo, muita história, muito detalhe. Por isso chamo a todos que quiserem a dar sua opinião. Só peço pra nos distanciarmos das questões religiosas que poderiam entrar aqui, porque senão entraremos no terreno do imponderável e da intolerância. ;)
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